MICHAEL GEORGE COSTA CARNEIRO
Mestre em Ciências Pedagógicas (ISEP), tutor do Consórcio UERJ / CEDERJ e professor da UniCarioca.
Doutorando da Unirio.
Resumo: Esse artigo visa analisar a visão de memória de futuro, difundida no meio acadêmico pelo filósofo Friedrich Nietzsche, e desenvolvida na cultura guarani mbyá na tribo Sapukai em Angra dos Reis/RJ através de uma “nova” forma do ensino/aprendizagem de História na Escola Indígena Estadual Guarani Kuery Renda.
Palavras-chave: memória de futuro – índios guaranis – educação indígena guarani mbyá
Sapukai**: a criação de uma escola com valores não-juruá
Atualmente as chamadas escolas indígenas de todo o Brasil estão vivenciando um momento distinto de sua trajetória histórica enquanto instituição, um momento ímpar no qual ocorre uma aproximação da instituição escola com os índios.
Quando os portugueses chegaram ao Brasil em 1500, dando início ao processo de colonização de nossas terras, a visão sobre educação era extremamente eurocêntrica, assim pensava-se que a escola monopolizava a questão educacional, sendo a única instituição em sociedade a propagar o saber. Nesta escola, a figura do profissional qualificado (o professor), de caráter especializado era unívoca; como método a disciplina rígida, que por muitas vezes apropriava-se de castigos físicos. É relevante relatar que no:
século XVI, o princípio pedagógico indígena mais criticado foi aquele detectado por um missionário jesuíta, quando registrou, surpreso, que os índios “amam os filhos extraordinariamente”, lamentando porém que “nenhum gênero de castigo tem para os filhos, nem há pai nem mãe que em toda a vida castigue nem toque em filho”. Esse tipo de relação, na qual as crianças são socializadas sem repressão, é observável ainda hoje, no século XXI, nas três aldeias guaranis do Rio de Janeiro: uma delas – Sapukai – em Angra dos Reis e as outras duas – Itatim e Araponga – no município de Parati. O comportamento atual dos guaranis e o discurso que o sustenta podem ser resumidos no depoimento de uma jovem mbyá, mãe de três filhos: “Mbyá puro não bate na criança. Nunca. Não precisa bater nem brigar, só falar” (FREIRE, José. Op. Cit., p. 3).
Esta visão de “educação”, esta visão de “escola” chocava-se estrondosamente com a visão indígena de educação, no qual o processo educacional está centrado em diversos agentes (a tribo é o centro educacional), baseia-se na tradição oral, na ação e no exemplo (“todos são professores, todos são alunos”).
Assim, para os europeus os índios não possuíam um processo de educação formal. Constatamos assim uma visão etnocêntrica dos europeus para com os índios, os europeus utilizaram a sua:
visão de mundo com a qual tomamos nosso próprio grupo como centro de tudo, e os demais grupos são pensados e sentidos pelos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que á a existência. No plano intelectual pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença: no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc. (ROCHA, Everardo. Op. Cit., p.7).
Durante todo o Brasil Colônia, Brasil Império e a quase totalidade do Brasil República, as escolas fundadas pelo poder público brasileiro “serviam” para destruir as identidades indígenas. Ainda em uma visão extremamente eurocêntrica acreditava-se que os índios “não possuíam cultura” e deveriam absorver a cultura (europeia) através do saber institucionalizado. Destaca-se neste sentido, a ação durante o Brasil Colônia dos padres jesuítas, que fundaram as primeiras escolas no Brasil e tinham como objetivo principal catequizar as populações indígenas durante o processo de Contra Reforma Católica.
Durante quase todo o período republicano esta visão não se modificou, neste contexto surge em 1910 o Serviço de Proteção ao Índio que tinha por objetivo pacificar e integrar os índios à civilização para formar mão-de-obra para o país. Não à toa, o SPI surgiu inicialmente como Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, promovendo a expansão econômica por meio de política educacional e sanitária. Desfigurando assim, o princípio no qual a:
cultura diz respeito à humanidade como um todo e ao mesmo tempo a cada um dos povos, nações, sociedades e grupos humanos. Quando se considera as culturas particulares que existem ou existiram, logo se constata a grande variação delas. Saber em que medida as culturas variam e quais as razões da variedade das culturas humanas são questões que provocam muita discussão. Por enquanto quero salientar que é sempre fundamental entender os sentidos que uma realidade cultural faz para aqueles que a vivem. De fato, a preocupação em entender isso é uma importante conquista contemporânea. (SANTOS, José. Op. Cit., p. 8)
Somente com a Constituição de 1988, em seu Art. 210, permite que os índios trabalhem os seus próprios processos de aprendizagem (até então a Fundação Nacional do Índio - FUNAI - mantinha professores não índios nas escolas das tribos indígenas). Neste sentido, em 1991, a educação indígena passa a ficar a cargo do Ministério da Educação – MEC - (e não mais da FUNAI), e assim passam a se estabelecer parcerias com as Secretarias Estaduais e Municipais de Educação para a concretização de uma “nova” educação indígena.
Neste ensejo, em 1996, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) em seus Art. 32, 78 e 79, passam a caracterizar as escolas indígenas em outro sentido; passam estas escolas a serem bilíngües e possuir o direito e o dever de construir o seu Projeto Político Pedagógico (PPP). E ainda em 2002, o MEC cria os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) das escolas indígenas.
No Estado do Rio de Janeiro em 2003 as escolas indígenas foram reconhecidas pela Secretaria Estadual de Educação (SEEDUC), criando assim um setor para gerenciá-las. Existem no Estado do Rio de Janeiro escolas indígenas em Angra dos Reis e Parati, no sul do estado. Tivemos a oportunidade de conhecer a Escola Indígena Estadual Guarani Kuery Renda em Angra dos Reis (Aldeia Sapukai) que no momento atual possui um trabalho focado na criação de uma “nova” escola utilizando-se dos seguintes critérios / ações:
*a escola não é uma ameaça às tradições da tribo, e sim uma forma de afirmação identitária;
*é uma forma de resistência cultural;
*a escola não deve tornar-se um “gueto” dos índios guarani mbyá;
*a escola deve trabalhar a cultura indígena (como forma de desenvolver a identidade dos mbyás) e também trabalhar a cultura juruá – a cultura dos brancos – para não serem ludibriados;
*e como principal tarefa a escola possui a vertente de trabalhar a relação de ensino / aprendizagem não no sentido de “tornar o outro parecido comigo”, mas relacionar-se com o entorno cultural diversificado.
É importante relatar que esta nova escola indígena utiliza-se, em um sentido amplo, à chamada pedagogia da oralidade; na qual a tradição oral é de extrema relevância (daí o grande respeito aos anciãos), a importância aos documentos visuais (fotos e filmagens), forma tradicional na passagem do saber, para os guaranis mbyás a narrativa é uma forma de transformação onde a história vivida passar a ser um instrumento de experiências e lições. Durante:
muito tempo, os juruá que pesquisavam a História, achavam que os povos de memória oral eram “povos sem história” ou povos pré-históricos, que não dominavam a escrita, não detinham o saber e, por isso, não tinham memória. Eles achavam que a tradição oral não era digna de credibilidade. Diziam que sem fontes escritas, não há história, não há saber. Mas agora isso está mudando, porque os juruá descobriram que os povos indígenas não eram carentes de escrita. Eram independentes da escrita. (FREIRE, José. Op. Cit., p. 3).
Assim, em um contexto amplo, que tem por base um novo projeto de memória social partindo do princípio de se contar sua própria História, que tem por meta um projeto étnico-cultural de reforço à identidade guarani mbyá. A História:
vivida pelos parentes que se foram, as relações traumáticas e o resultado dessas experiências, possibilitam ao guarani mbyá resignificar seus mitos mantendo uma matriz referencial de origem e de vivência. A matriz simbólica se refaz nessas histórias cujas metáforas trazem os personagens míticos ao cotidiano da história: é o corvo na história do juruá, a onça na história de Kuaray e Jachy e no sonho verdadeiro, o porco-do-mato na história do Pa’i, entre outros. (OLIVEIRA, Vera. Op. Cit., p. 4)
Teko***: o mito de Hebe
Deusa da Juventude e de todo o vigor com ela implicado, Hebe é filha de Hera e Zeus e herdou da mãe o presídio sob o casamento: Hebe é a Deusa das noivas jovens que foi oferecida pela sua mãe a Héracles em pensamento, depois de este ter conseguido ultrapassar todos os obstáculos que Hera pusera no seu caminho para ele crescer.
O mito conta que em tempos Hebe era a portadora da taça das bebidas no Olimpo, transportando-a durante os banquetes dos Deuses, enchendo as suas taças quando estas se esvaziavam. No entanto, inundada do fulgor da juventude, ela entornou acidentalmente um pouco de ambrósia sobre um Deus e foi imediatamente removida do cargo. Zeus viu nisto uma oportunidade e pôs o seu amante Ganimedes no lugar da filha, para assim o proteger da sua mulher, Hera.
Como aquela que alimentava os Deuses, Hebe é vista também como a Deusa da Imortalidade, aquela que concede a força com que os Deuses não envelhecem e permanecem "congelados" na sua imagem arquétipa, que seja de adolescente, como em Eros, de jovem, como em Apolo ou Artémis, de adulto, como Deméter ou Héstia, ou de pessoa madura, como acontece com Zeus ou Poseidon. Para além disso é também a ela que os mortais recorrem para obter juventude, quer seja para a manter quer para obter um rejuvenescimento o que faz dela, de acordo com a nossa sociedade, uma das Deusas da beleza.
Assim, não admira que Hebe fosse frequentemente associada com Afrodite, quer como sua companheira ou sua mensageira que ao espalhar a juventude espalha também as paixões associadas a ela e a beleza. Mas permanece também sempre associada à sua mãe, Hera, cuidando dela e dos seus filhos. Finalmente, encontramo-la ligada intimamente a Héracles, o seu marido. O seu culto é, na maioria das vezes, sempre misturado com o destes Deuses e raramente individual, exceto, talvez, a nível individual com pessoas a quererem a sua juventude, mas isto não passa de mera conjectura.
Possuía, no entanto, um templo e culto só para ela em Flios, no Sul da Grécia. Aí era chamada com o epíteto de Ganymeda e não possuía qualquer imagem de culto, o que é bastante invulgar. Em Flios a Princesa era também venerada como a que perdoa os que suplicam por perdão: criminosos ou pessoas que procurassem expiação no seu templo eram perdoados pela Deusa e livres de todos os crimes.
É possível, segundo Aelian, que os seus animais sagrados fossem o galo e a galinha que eram mantidos no templo em honra de Hebe e Héracles. Provavelmente o galo será sagrado a ele e a galinha a ela, já que o complexo sagrado era constituído por dois templos e as galinhas eram alimentadas no de Hebe, existindo uma corrente de água entre os dois templos para que não haja galinhas no de Héracles nem galos no de Hebe.
Um dos seus epítetos era Basileia, a Princesa, e ela era muitas vezes chamada assim, sem qualquer outra referência a quem se tratava, o que faz dela a Princesa dos Deuses. Outro título, Dia, a Brilhante, ou a de Zeus, reforça isto, já que este título pertencia também a Zeus sob a forma de Dios. Outro título seu, Ganymeda, significa "a Princesa que faz felicidade" indica também a sua ascensão real.
Ambrósia (em grego: ἀμβροσία), o manjar dos deuses do Olimpo, era um doce com divinal sabor, segundo a mitologia grega. Era tão poderoso que se um mortal a quem era vetado, a comesse, ganharia a imortalidade. Conta a história que, quando os deuses o ofereciam a algum humano, este, ao experimentá-lo, sentia uma sensação de extrema felicidade.
Fonte: http://calle.no.sapo.pt/temenos/hebe.htm, acesso 04/06/2011.
Mandu’a gua tenonderã****: uma nova forma de se desenvolver a memória social
Na tribo Sapukai em Angra dos Reis/RJ a Unidade Escolar gerenciada pelo governo do estado do Rio de Janeiro, refletindo o atual momento das escolas indígenas no Brasil, está através do ensino do componente curricular História, passando as novas gerações o sentido de Memória Social desenvolvido pelas tradições dos guaranis mbyá.
Na sociedade ocidental cristã foi necessário, em um dado momento histórico, a criação do Estado como forma de violência daqueles que estavam no “comando” deste processo (chefes da horda), para com aqueles que viviam em grupos nômades, em movimentos anárquicos, fora do controle do poder institucionalizado.
Assim, o homem passa a ser um animal com memória (daí, o desenvolvimento da linguagem – palavras memorizadas), e a utilização da memória como forma de sublimação de vontades de potência dos seres humanos.
A partir da criação do poder institucionalizado (Estado) os dirigentes por dominarem a esfera política-econômica da sociedade passam a selecionar o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido (criam-se instrumentos para tal: canais de comunicação, instituições, símbolos, etc). Como forma de perpetuar valores e princípios do grupo que está no poder como forma de perpetuação de tais valores e princípios na sociedade como um todo, perpetuando também o grupo que está no poder através de sucessivas gerações.
Os dirigentes irão criar formas de punir severamente aqueles que se esquecem do que foi determinado / selecionado por eles. Todos aqueles que desobedecerem as ordens determinadas serão punidos, serão taxados de “pecadores” dos valores da sociedade (e NÃO apenas do grupo que está no poder). E ainda surgirá no homem o sentimento de ressentimento, no qual os próprios “pecadores” se culpam, gerando assim um princípio de autoflagelação psíquico-social. Daí, o aparecimento do ser humano melancólico e moribundo que não “encontra-se” na própria sociedade em que vive, pois se culpa a todo instante por não “retribuir” a sociedade as “exigências” da mesma. Assim se:
estabelece o conceito “bom” como essencialmente igual a “útil”, “conveniente”, de modo que nos conceitos “bom” e “ruim” a humanidade teria sumariado e sancionado justamente as suas experiências inesquecidas e inesquecíveis acerca do útil-conveniente e do nocico-inconveniente. Bom é, segundo essa teoria, o que desde sempre demonstrou ser útil: assim pode requerer validade como “valioso no mais alto grau”, “valioso em si”. (NIETZSCHE, Friedrich. Op. Cit., p. 18)
Segundo o filósofo Friedrich Nietzsche, existem várias formas de se processar a memória social, formas que este chamou de espíritos. A memória social pode ser desenvolvida através de um espírito camelo (no qual o homem “carrega” a culpa), o espírito leão (quebra as “tábuas” do passado) e o espírito criança (uma memória em face do futuro e da criação). Este espírito criança pressupõe uma:
rebelião moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtem reparação. (NIETZCHE, Friedrich. Op. Cit., p. 26)
Atualmente os guaranis mbyá estão desenvolvendo através do ensino de História um projeto de reforço da identidade étnico-cultural, no qual TODOS (inclusive as crianças) possuem participação (portanto, uma real participação coletiva) na construção da Memória Social daquela tribo.
Os guaranis mbyá rejeitam toda a ideia do ensino oficial de História (“a História juruá”) e aspiram contar a SUA História, a sua versão da História. Como a tradição dos guaranis mbyá é oral os anciãos possuem um destaque neste processo, todavia o grupo de anciãos que digamos coordenam o processo (e NÃO o dirigem) NÃO utilizam suas memórias, NÃO utilizam seu conhecimento empírico sobre determinados fatos, para controlar, para dominar determinados grupos mais jovens.
A utilização da memória social pelos guaranis mbyá está diretamente relacionada a criação de uma memória de futuro (memória criança) na qual todos ouvem o que os anciãos passam aos mais jovens, e todos podem participar da construção das decisões dos valores e princípios no qual aquela comunidade irá se pautar para guiar-se em empreendimentos futuros. A memória guarani não deve ser vista como:
criações individuais, elas se transformam em criações coletivas tão possantes que temos dificuldades para nos apoderarmos delas, já que todos participam desta construção, inclusive as crianças, no intuito de transformação de futuro daquela comunidade. (BORGES, Paulo. Op. Cit., p. 6)
A ideia estabelecida pelos guaranis mbyá é que a memória deve ser utilizada não como “castração” de liberdades ou domínio de determinados grupos, mas como forma de liberdade de criação, de um espaço ao “novo” – novas avaliações, novos critérios, novas experiências.
Assim o desejo é que a memória social guarani mbyá seja algo eternamente jovem como no sentido do mito de Hebe para os gregos da Antiguidade, a escola Guarani Kueri Renda é a ambrósia no qual os índios deleitam-se como forma pensamentos vanguardistas de liberdade e pulsação constante de novos ideias, de novas visões/interpretações, de uma vida pulsante no futuro.
*Nova escola
**grito, clamor
***Juventude
****Memória de futuro
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORGES, Paulo. Uma visão indígena de história. SP: Traco, 2009.
FREIRE, José. Os guarani e a memória oral: a canoa do tempo. RJ: DP&A, 2004.
___________ . Maino’i e axi’já: esboço do mapa da educação indígena no Rio de Janeiro. RJ: DP&A, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. SP: Cia. das Letras, 2009.
___________________ . Assim falou Zaratustra. SP: Martin Claret, 1999.
NOBRE, Domingos. Os guarani mbyá do Rio de Janeiro: entre a casa de reza e a escola. RJ: UERJ, 2009.
OLIVEIRA, Vera. Aecha ra’u: vi em sonho. História memória guarani mbyá. RJ: UFRJ, 2008.
ROCHA, Everardo. O que é etnocentrismo? SP: Brasiliense, 2006.
SANTOS, José. O que é cultura? SP: Brasiliense, 2006.
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